A tigela dos Cinco Elementos: o Vazio em todos os seus estados (parte 2)

20 Dez, 2023
Reading Time: 12 minutes

Tu és pó, e ao pó retornarás

“Nossos corpos são feitos das brasas consumidas de estrelas, que se espalharam pela Galáxia em gigantescas explosões, muito antes de a gravidade atraí-las para formar a Terra.” [1]

Assim se inicia o livro Living with the Stars [2], no qual um astrofísico e um médico desenham os vínculos entre nosso pequeno universo corporal e o grande universo cósmico. O que é fascinante nessa frase é a conexão imediata que ela estabelece entre as criaturas orgânicas e as estrelas, assim como a presença de uma terceira força organizadora: a gravidade. Uma força que existe no vazio infinito do espaço, organizando a forma material e o movimento. Remeto o leitor ao primeiro artigo sobre o vazio (空 Kōng), onde se pode encontrar uma ideia de uma força organizadora descrita em tradições antigas.

É nesse ponto que reside o coração da nossa jornada através da linguagem tradicional. Como as tradições chinesas e budistas descrevem essa organização da forma pelo espaço? Entre a matéria e o espaço, entre o corpo e a consciência, quais vínculos existem para nossas tradições do Extremo Oriente?

Ou, como pergunta o Imperador Amarelo:

“Como o pequeno, o grande, o superficial e o profundo podem unir sua diversidade em uma única coisa?” [3]

Essa reflexão nos dará a oportunidade de esclarecer a noção chinesa de Shén (神), assim como a visão budista associada à consciência. Para esta última tradição, citaremos diferentes trechos do Tantra de Kalachakra [4][5], um dos textos esotéricos mais antigos do mundo budista indo-tibetano. Ele é um pouco equivalente ao Huang Di Nei Jing chinês, onde as conexões e interações entre microcosmo e macrocosmo são expostas em detalhe.

Números e nomes: retornando aos princípios

Sempre devemos começar compreendendo do que estamos falando e como falar sobre isso. Este é o princípio de Zhèng míng (正名), ou “a retificação dos nomes”, que exploramos ao longo de nossos artigos. Nomear algo de maneira apropriada já é conhecer esse algo.

Aqui, colocaremos duas perguntas simples:

Por que falamos de “elementos”?

Por que eles estão sempre associados ao número 5 e não ao 3, 4 ou 6?

Explorar inicialmente essas duas questões nos fornecerá boas fundações para mergulhar na riqueza das tradições budista e taoísta por meio de princípios fundamentais.

1) O princípio de causalidade e interdependência entre os constituintes do universo:

Do que o Homem e o Cosmos são feitos, e como eles se interconectam? Isso é chamado de princípio de ressonância:

“A luz do Sol e da Lua inevitavelmente produzem sombras; a água e o espelho inevitavelmente refletem; o impacto do tambor inevitavelmente gera um som. Assim, toda ação gera uma reação.”

(Ling Shu, cap. 45)

2) As dimensões numerológicas (3, 4, 5 ou 6) nas quais eles podem existir: Quais são os diferentes quadros e suas distinções?

“Isso é algo que tenho na mão e que é sentido no Coração; a boca é incapaz de expressá-lo; há aqui uma Arte (= um número 数) que está em algum lugar.”

(Zhuangzi, cap. 13)

Matéria ou movimento?

Se você já refletiu sobre o tema, provavelmente percebeu que o termo “elemento” transmite um viés muito material. Em chinês, o conceito de “5 elementos” vem do termo Wǔ xíng (五行). Wǔ (五) é o número “cinco”, e Xíng (行) é um verbo que significa “ir”. Claramente, não há nenhuma ideia de elemento material.

A tradução mais simples e próxima do sentido original seria “cinco movimentos”, que, embora menos utilizada, parece ser mais precisa. Se o termo genérico continua sendo os cinco “movimentos”, outras traduções que você pode encontrar incluem:

  • As 5 dinâmicas
  • As 5 forças
  • Os 5 agentes
  • Os 5 sopros

Todos esses movimentos estão dispostos em uma continuidade que vai do mais sutil ao mais denso, interconectados por um mesmo sistema de ressonância. Nesse caso, falamos de uma vibração diferente para cada um dos 5 movimentos. Por exemplo:

  • Os 5 sons
  • As 5 direções
  • As 5 cores
  • Os 5 sabores

Sobre todos esses planos de diferentes vibrações, citamos o tantra de Kalachakra:

“A classificação dos elementos do corpo compreende três milhões e meio de distinções, tão numerosas quanto suas modificações.”

(Kalachakra, estrofe 26)

Já que essas variações são tão numerosas, avançaremos munidos de uma boa metodologia. Agora que pudemos esclarecer a noção de elemento/movimento, abordaremos os números de 3 a 6, passando pelo 4 e o 5.

Três 三: os três mundos

O número três simboliza a organização original. Na filosofia chinesa, o três é o resultado do 1 e do 2, do Yin e do Yang. Ele designa as “3 potências”: Céu-Homem-Terra, representadas simbolicamente pelo pictograma de Mêncio. Também se fala dos “3 mundos”, o de baixo, o de cima e o do meio, como nas tradições xamânicas, por exemplo.

O número três, portanto, representa as três dimensões principais ou três camadas maiores que organizam o cosmos. A tripartição “alto, meio e baixo” (上中下, em chinês: Shàn, zhōng, xià) é uma classificação muito clássica, utilizada em uma grande variedade de domínios.

Na medicina chinesa, os grandes meridianos são distribuídos em 3 Yin-3 Yang, e suas funções também seguem um modelo de três tempos, chamado “Abertura, Pivô e Fechamento”. Três funções, três dinâmicas em um sistema de três níveis.

O número três evoca ainda as três fases de desdobramento que aparecem nas metáforas vegetais abundantes nos textos clássicos, por exemplo, na forma de “Raiz, Caule e Fruto”.

A dimensão do número três é o terreno de jogo (o cosmos) no qual os movimentos e elementos podem atuar. A figura geométrica tradicionalmente associada ao número três é o triângulo equilátero.

Figuras simbólicas associadas ao número 3 (三) em diferentes tradições

Quatro 四: a passagem para a Terra

Com o número quatro, entramos na dimensão do Espaço e do Tempo. É na Terra que o Céu realiza mudanças e transformações. Na tradição chinesa, o Vento dos Quatro Orientais (Sì fāng 四方, ou Norte-Sul-Leste-Oeste) traz as Quatro Estações (Sì shí 四時, ou Primavera-Verão-Outono-Inverno). Através do número quatro, organiza-se um movimento de ascensão (Madeira–Fogo) e de descensão (Metal–Água). Esses são os movimentos principais que ocorrem no Espaço.

De cada direção (Fāng 方) provém um movimento, um sopro específico. Esse não é um detalhe trivial, pois é nessa ordem que os cinco movimentos são apresentados nos primeiros capítulos do Su Wen. Por exemplo, sobre a Madeira:

*”O aspecto verde natural do quadrante (Fāng 方) oriental

Penetra o Fígado

Abre seu orifício no olho,

Armazena suas essências no Fígado,

Sua manifestação patológica provoca tremores e sobressaltos;

Seu sabor é o ácido… (etc.)”*

(Su Wen, capítulo 4)

É interessante notar que a expressão “abrir uma direção” (Kāi fāng 開方) significava, nos textos clássicos: “dar uma prescrição (de farmacopéia)” ou, de forma mais simples, “abrir uma direção terapêutica (no espaço)”. Tomando como referência inicial essas quatro direções cardeais, que expressam os movimentos de ascensão e descensão, de expansão e recolhimento:

*”As Quatro Estações que o yin/yang desdobra

São o fim e o começo dos dez mil seres,

O tronco onde a morte e a vida se enraízam.

Quem vai contra elas,

Provoca a catástrofe que destrói sua vida.

Quem as segue,

Previne todo mal.

Isso é o que se chama possuir o Caminho.”*

(Su Wen, capítulo 3)

Neste trecho, reaparece a metáfora vegetal da árvore e do enraizamento. Dentro desse modelo de quatro elementos, é importante notar que tudo provém e tudo retorna à Terra, incluindo o próprio Homem:

“É com o suor do teu rosto que comerás o pão, até que retornes à Terra, porque dela foste tirado.”

(Gênesis 3:19)

Os 4 elementos: Terra, Fogo, Água, Ar

É isso que nos ensina a simbologia do número Quatro. A Terra é o pivô, sendo ela também quem dá ao número quatro sua figura geométrica, já que tradicionalmente se usa o quadrado para representar os quatro elementos. Pensemos nos 4 elementos da tradição grega (Terra, Água, Fogo e Ar), dos quais nosso zodíaco deriva.

Um ponto em comum entre as tradições budistas e taoístas é a importância da Terra como referência para os outros elementos/movimentos. Na China, dir-se-ia que a Terra é o Centro (Zhōng 中), a quinta direção dos 4 Orientais, o quinto movimento dos outros quatro. Na Índia ou no Tibete, diz-se que ela contém os outros elementos, sendo o espaço material que pode sustentá-los e acolhê-los. A Terra trabalha em parceria com outro elemento que exploramos longamente na primeira parte: a vacuidade, o espaço (Kōng 空).

Cinco 五: da Terra ao Espaço

Um dos primeiros grandes artesanatos da humanidade foi a cerâmica. A cerâmica permitiu que populações semi-nômades de caçadores-coletores começassem a se sedentarizar gradualmente, possibilitando o armazenamento, o cozimento e o transporte de alimentos de forma mais eficiente.

Ao analisar essa prática, percebemos como a cerâmica foi uma das primeiras evidências da capacidade humana de dominar os cinco elementos. A Terra é misturada com a Água, seca ao sol ou queimada no Fogo, e serve como recipiente através do qual o Ar circula. Esse utensílio possibilita uma grande variedade de usos, pois cria Espaço.

O mesmo ocorre no corpo humano: tudo começa com a materialidade da Terra e culmina no Espaço, que, nas tradições budistas, representa o quinto elemento.

No Japão, é comum encontrar em cemitérios estátuas de pedra que reúnem as formas simbólicas dos cinco elementos provenientes da tradição budista. Em japonês: chi, sui, ka, fū, kū (Terra, Água, Fogo, Ar, Vacuidade/Espaço).

Relação entre os 5 elementos, suas formas simbólicas e correspondência no corpo

(Ilustração tirada de: “A Arte Sublime e Última dos Pontos Vitais”. Veja a bibliografia.)

No Tantra de Kalachakra, pode-se ler:

“O receptáculo e seu conteúdo são classificados em sequência, considerando suas naturezas respectivas. (…)

A Terra é a dureza, a Água é a fluidez, o Fogo é o calor, o Ar é o movimento. (…)

A Água, espalhada sobre a Terra, é, por natureza, de forma líquida. Quando escavamos, ela é observada na Terra. E o Espaço é o receptáculo de todos os elementos: Terra, Água, Fogo e Ar. Quanto aos elementos, começando pela Terra, eles são o conteúdo.”

(Estrofes 33 e 18)

E como eles geram uns aos outros enquanto movimentos e forças dinâmicas:

“A Terra dá a semente que se encontra no lótus do útero, depois a Água a faz germinar. Em seguida, o Fogo dá a floração e apreende os seis sabores, o Ar ativa o crescimento. A vacuidade dá o espaço para o crescimento, ó Suchandra, assim o processo se cumpre nas épocas determinadas.”

(Estrofe 4)

No modelo budista, percebe-se claramente esse desdobramento do mais denso ao mais imaterial, bem como a relação de receptáculo-conteúdo entre esses dois polos. Sem a Terra, não há suporte para os outros elementos (Água, Fogo, Ar), e sem o Espaço, não há Terra que possa ser contida. Mais uma vez, a tigela só é útil porque está vazia.

Na tradição chinesa: o movimento do cinco (Wǔ xíng, 五行)

Na tradição chinesa, o movimento dos cinco (Wǔ xíng, 五行) vai do Céu para a Terra, manifestando-se inicialmente pelas cinco notas ou cinco sons (Wǔ yīn, 五音) e depois pelas cinco cores (Wǔ sè, 五色). Todas as manifestações dos cinco movimentos, do mais sutil ao mais material, poderiam ser representadas pela antiga grafia do caractere cinco 「五」, que lembra um diagrama com a forma de uma ampulheta. Essa ampulheta pode também ser vista como composta por dois triângulos, cada um simbolizando o número três. Assim, 3 + 3 = 6. Em termos de direções, se para os chineses o cinco representa o centro cercado pelas quatro direções, o número seis introduz, no Espaço, os conceitos de alto e baixo (shàng xià, 上下): os quatro orientes mais o Zênite (alto) e o Nadir (baixo).

Na continuação deste artigo, veremos como todos esses movimentos criam o 6º elemento. E muito mais…

(A seguir)


Notas

[1] Citação original: “Nossos corpos são feitos de brasas queimadas de estrelas que foram liberadas na Galáxia em explosões massivas muito antes de a gravidade as unir para formar a Terra”.

[2] “Viver com as estrelas: como o corpo humano está conectado aos ciclos de vida da Terra, dos planetas e das estrelas”, Karel Schrijver e Iris Schrijver, OUP Oxford, 2015.

[3] Ling Shu, cap.45, Tradução Milsky-Andres

[4] Significa “Tantra da Roda (Chakra) do Tempo (Kala)”. Não sabemos a data exata em que foi escrito, mas teria chegado ao Tibete via Índia por volta do primeiro milênio. Texto de referência para Yogi e para o mundo médico.

[5] “Kālachakra Tantra – O livro do corpo sutil acompanhado de seu grande comentário A luz imaculada”; tradução de Sofia Stril-Rever, Ed. Desclée de Brouwer, 2000.

[6] Kalachakra Tantra, estrofe 26, p.116


Glossário

  • Wǔ xíng:五行 (cinco movimentos)
  • Shang. zhong. xià:上.中.下 (superior, central, inferior)
  • Sì fāng:四方 (quatro orientações/direções)
  • Sì shí:四時 (quatro vezes/temporadas)
  • Kāi fāng:開方 (“abrir uma direção”)
  • Zhèng míng:正名 (retificação de nomes)
  • Tǔ, shuǐ, huǒ, fēng, kōng:土、水、火、風、空 (Terra, Água, Fogo, Ar, Espaço)


Para ir mais longe

Sobre os 5 elementos do nosso comportamento, voz, expressões, etc.

  • “Como me conhecer melhor graças aos 5 elementos”, Daniel Laurent, 2017, edições dos 5 elementos.

Sobre o diagnóstico pelo formato das mãos segundo os 5 elementos:

  • “Planetas e mãos”, Yves Réquéna, edições de la Maisnie, 1997, Guy Trédaniel.


Autor

Julien Chabert

Traductor

Alice Rumi
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